06/06/2013
Amélia Carolina
Ela era daquele tipo mesmo, do tipo que sabia a contagem exata dos dias e do porquê de cada sorriso que deixava cair no rosto. Era um pouco desajeitada e todo dia derrubava alguma coisa ou outra das mãos. Mas aquele sorriso, ah aquele sorriso, nunca deixou de sorrir e ficar sempre com cara de boba, aquelas bobas eternamente apaixonadas. Desde o dia que nasceu, o pai jurava de pé junto que ela olhou pra ele e sorriu, ninguém nunca disse que aquilo era mentira, mas todo mundo sabia que de história de pescador ele era mestre. Na certidão o nome de Amélia Carolina, na lembrança, a Amélia dos Sorrisos.
Com 15 anos e alguns dias, nem ela sabia quantos, o pai contador de histórias partiu e fez Amélia chorar. O homem mais lindo da vida dela, o dono de seus sorrisos mais fáceis, pegou firme na mão da menina e disse: "Eu vou, mas não deixa, minha flor mar bunita, o teu sorriso ir junto comigo". Suspirou, fechou os olhos e partiu com o chapéu de palha na cabeça. Ela chorou, claro que chorou, porém não deixou o sorriso ser enterrado junto com o pai naquele chão batido do sertão. Só que no sertão ela não quis mais ficar. Pegou as trouxas dela e da mãe, as jogou em uma mala velha e partiu. Chegou na cidade grande, fez doce, malabarismo com a pensão que recebiam e resolveu estudar pra dar uma vida melhor pra mãe que sofria de pé gelado e coração triste depois que o pai partiu. Consegui, 20 anos na cara e nas mãos o certificado do supletivo. Fez faxina nas Casas Bahia, dormia 4 horas por dia e nas outras horas se colocava a ler, ler e ler. De tanto ler, chegou a vomitar conhecimento em várias lixeiras, passou no vestibular e a mãe contava para as vizinhas do cortiço que a sua Amélia Carolina seria doutora. Na verdade, ela seria jornalista, mas na simplicidade da mãe dela, Amélia seria doutora porque chegava todos os dias em casa carregada de livros, de sonhos e toda a esperança possível, e é claro, sempre sorrindo. Mesmo nos dias que ela tinha vontade de nunca mais levantar daquele colchão jogado no chão da sala, ela lembrava do pai, ela lembrava da vida sofrida do sertão, da saudade e de todo o resto e aquilo fazia ela levantar. E engana-se quem pensa que ela era a melhor aluna da sala, não, ela se formou com luta, com guerra e paz, porém sem as honras para uma aluna excelente porque ela não foi. Na noite da formatura, nada mais a honrou que ver o choro saudoso e alegre estampando os olhos da mãe, que com mãos trêmulas e já cansadas segurou as mãos da filha e disse: "Minha flor mar bunita, agora cê é dotora!". E ambas sentaram e choraram lembrando do homem de suas vidas, lembrando do chão do sertão e vendo que valeu a pena jogar as trouxas naquela mala velha e partir para a cidade grande. E Amélia Carolina, sorria, dançava e tomou um porre para comemorar, chegou em casa e o colchão jogado na sala parecia uma cama king size.
Do cortiço, mãe e filha foram morar em um apartamento alugado. A mãe já com as vistas cansadas, com os pés ainda gelados e com o coração ainda triste, escutava toda a noite os sonhos que cativavam o coração da filha, apoiava a ideia de Amélia se pós-graduar sem entender o que aquelas duas palavras significavam, e sempre dizia: "Amélia, Amélia, e quando eu partir? E quando eu for embora feito o teu pai, o que vai ser do cê? Fiá, flor mar bunita do sertão, trate de encontrar um amor, que aqueça os teus pé frio e dê no teu coração as alegria que o teu finado pai me deu". E Amélia ria, como se escondesse um segredo. E a mãe dela fingia não ver nos olhos dela e na boca uma nova alegria, e antes de dormir acendia uma oração pra que Deus alumiasse os passos da filha, as pós-gadruação e a vida de dotora dela.
"Mãe, vamos nos mudar! Mãe, eu comprei uma casinha pra senhora, com um jardim para a senhora cuidar. Mãe, mãe, eu te amo". Ela não conseguia mais falar, nos olhos lágrimas de alegria, no coração da mãe batidas fortes e gratidão a filha dotora pós-gadruada que fez por ela o que nunca ela imaginou na vida do sertão ter. "E mãe, tem mais uma coisa". A mãe olha pra ela e diz: "É sobre o moço que deixou teu sorriso mais bunito?". E Amélia abraçou a mãe, ela já sabia de tudo, o mundo inteiro sabia porque era muita felicidade dentro do peito, recheada nos olhos e espalhada pelo corpo. Até o padeiro tinha percebido isso, porém achou muita intromissão da parte dele perguntar pra Amélia sobre o motivo notório dos sorrisos dela.
E eis aos interessados como Amélia Carolina conheceu o seu príncipe encantado montado em um fusca azul.
Ela estava no último semestre da faculdade, na correria de tudo, nas pressões do estágio, na ânsia e no medo de talvez não passar na matéria daquele professor rabugento. E ele passou por ela e ela sorriu. E isso se repetiu por várias semanas, ele passava, ela sorria. Ele chegava em casa e não entendia porque ficar preso no sorriso daquela mulher da pele morena, dos olhos castanhos e do cabelo enrolado. Até que um dia ele em um ímpeto de coragem desconhecida pergunta todo atrapalhado: "Oi. Me chamo João, bem acho que não te interessa. Ah, desculpa...desculpa mesmo. Esquece meu nome, por favor, esquece que eu tô falando com você. Ai que idiota como você vai esquecer se eu ainda tô falando...Acho que vou desmaiar". Não é que ele desmaiou. Acordou sob o olhar descontraído de Amélia. "Moça, não me diz que eu desmaiei. ..não é possível, como eu posso ser tão atrapalhado?". "Ai moço, eu não sei. Também sou atrapalhada, bem vindo ao grupo...Ah João, me chamo Amélia, Amélia Carolina". Foi assim. Não que Amélia não tivesse outras histórias, outros amores, outros caras que fizeram ela sorrir, mas como ela mesmo dizia: "João foi aquele cara que quando chegou me fez arrastar um bonde, me fez chegar ao céu em segundos, foi o melhor beijo de boca molhada que chegou nos meus lábios. O João arrebatou meu coração pra uma dimensão que me faz querer amar todos os dias, a todo renascer do sol. O João é a minha poesia escancarada na cara como sorriso. Acho que é isso...".
"Mãe, esse é o João. João essa é a mulher mais maravilhosa do universo, minha mãe, dona Luí, e ouse não chamá-la por outro nome!". Foi assim que João conheceu dona Luí e ela então entendeu que a filha ficaria bem acompanhada e amada, pois já estava chegando a hora de encontrar o marido que nunca deixou de amar e tirar do coração logo aquela tristeza teimosa.
Certo dia, desses dias que nunca são certos, Amélia chega em casa e vê a mãe prostrada na cama, tão branca que chegava a dar frio só de olhar pra ela. Amélia pega o telefone e chama João, sabia que médico nenhum ia resolver aquela partida, a mãe tava partindo pra ficar junto com o pai e ela não queria ficar sozinha no mundo. "Fiá, chora não, cê é flor bunita, cê é flor amada. Sei que o Jão vai te amá, vi isso nos olhos dele, vi isso nos teus. Ocês vão passar por coisas ruins, por coisas boas, por dias de seca e por outros de fartura, o que vai ficá é o amor. É sempre o amor que fica. O teu pai foi e ficou o amor dele, ficou o nosso fruto que foi ocê. Não vou conhecer os teus fiós, mas sei que eles serão bunitos como ocês dois. Eu sempre subê que um dia a gente ia ficá longe,a minha tristeza precisa sair do coração, ela não guenta mais. Obrigada pela casinha, por ter se tornado dotora e logo será pós-gadruada. Sei que Deus vai alumiar ocês, pedi isso todos os dias e ele vai cuidar de tudo. Lembra do que o teu pai te disse? Vou repetir antes que meu coração dê um treco. Eu vou, mas não deixa, minha flor mar bunita, o teu sorriso ir junto comigo". E igual ao pai de Amélia, dona Luí suspirou, fechou os olhos e com mãos geladas soltou as mãos da filha. Amélia abraçou forte João, os dois choraram e dona Luí teve sua dor de tristeza curada.
"Meu amor, não me abandona, nunca? Vou sorrir por você, todos os dias. Vou lembrar que o meu sorriso não foi embora junto com a minha mãe porque você segurava a minha mão, porque você me abraçou forte e me disse que estaríamos juntos até o fim"." Não Amélia, você é a flor mar bunita, você é a menina mais encantadora dos meus olhos e estaremos juntos até o fim".
Três meses após a partida de dona Luí, João e Amélia se casaram, uma cerimônia simples, com poucos convidados e com muito amor. Trocaram alianças e dois anos depois chegaram as gêmeas e três anos depois o menino mais atrapalhado que João e Amélia juntos.
Amélia e João foram casados por 27 anos, se amaram desde o primeiro olhar até o último suspiro de Amélia. Foram felizes, foram infelizes, pensaram no divórcio, desistiram quando uma das gêmeas teve uma pneumonia que quase a matou. Foram endividados por uma viagem a Disney. Foram escandalosos com beijos no meio da rua, com discussões infantis em idas ao restaurante. Foram alguns dias cada um dormindo em uma cama. Ela jornalista colunista de um jornal pequeno, ele professor de matemática em uma faculdade particular sem renome. Foram incansáveis amantes um do outro, apesar dos dias de raiva. Como disse dona Luí passaram por dias de seca e fartura, por dias bons e maus, e não é que ela tinha razão, o amor foi o que permaneceu. Compraram uma casa e um apartamento, mas o que ficou foi o amor. Tiraram muitas e muitas fotos juntos, mas o que ficou foi o amor. Viveram e ela morreu, mas o que ficou foi o amor.
Das gêmeas sei que uma está terminando o doutorado em História Antiga na Europa, a outra é dentista que trabalha na África em comunidades carentes e o menino advogado da defensoria pública do Rio de Janeiro.
E você quer saber como Amélia disse adeus?
Era natal e por conta da insistência de Amélia todos estavam lá, as filhas e seus maridos, uma delas estava grávida, o filho e sua namorada. Todos abriram seus presentes, menos Amélia. Então ela pega a taça com champanhe e naquele movimento clichê de querer a atenção de todos começa um discurso: "Boa noite, amores da minha vida. Agradeço os presentes, agradeço em especial a presença de cada um. João, obrigada pelo teu amor. Obrigada por ser o marido mais espetacular do mundo, mesmo quando eu te digo pra não deixar a toalha molhada na cama e você deixa. Em especial hoje eu lembro do dia que minha saudosa mãe partiu e você estava comigo e prometeu me amar até o fim, você foi fiel nessa promessa. Filhas, vocês foram os meus primeiros tesouros, as jóias em dose dupla que ganhei de surpresa. Foi maravilhoso ver o quão maravilhosas vocês se tornaram. Querida Luiza, o bebê que você carrega aí tenho certeza que será coberto de amor e muita sabedoria. Você e o Francisco serão grandes pais. Mariana, logo você e o Mário também terão essa chance majestosa de dar vida a uma criança que será luz na vida de vocês. E meu pequeno, pra sempre pequeno, Marcelo, estou tão feliz pelo caminho que você optou, por todas as tuas escolhas, entre elas, a Gabriela, que eu vejo bem no fundo dos teus olhos que é o amor da tua vida. Gabriela, cuida bem do meu precioso. Sou extremamente feliz por ter vocês na minha vida e sei que esse momento foi preparado por Deus, ele cuidou de cada detalhe, ele ouvi as orações da minha mãe, ele não permitiu que meu sorriso fosse embora junto com meu pai. Quero deixar de presente para vocês o que minha mãe me deixou antes de partir, o conselho de que o amor sempre fica. As coisas vão passar, as estações sempre mudam, as pessoas mudam algumas coisas, os amigos não são eternos, nem nós o somos. Vocês terão momentos de extrema dificuldade, a vida nunca será fácil, ninguém deixa as coisas serem leves e descomplicadas, porém, não esqueçam que o que fica é o amor. Façam tudo pensando e calculando se no fim, mesmo com tudo desabando, o amor ficará. Cometi os erros que qualquer pessoa está enfadada a cometer, cometi uns mais que outros, porém olhando pra vocês percebo que no fim o que ficou foi o amor...foi bom amar vocês...(respiração ofegante). Eu vou embora, me desculpem...me desculpem...(respiração mais ofegante) mas não deixem o sorriso de vocês irem embora comigo". Suspirou, fechou os olhos e caiu desfalecida ao chão. Os filhos queriam chamar uma ambulância, João disse que realmente aquela era a hora de Amélia, que aquele sentimento de partida foi semelhante ao do dia que Dona Luí foi ao encontro do pai de Amélia. O coração de todos doía e nos lábios dela, mesmo gelada e já sem vida, residia aquele sorriso.
"Meus queridos, sei que vou partir. Talvez não dê tempo de contar tudo que precisarei contar, por isso, deixei essa carta. Há 4 meses fui diagnosticada com uma doença muito rara em meus pulmões que foi descoberta naqueles meus exames de rotina de todos os anos. Meu médico me orientou que haveria tratamento, porém, um tratamento agressivo que poderia me custar dias bons e alegres com o meu João, talvez dias e dias internada em um hospital sem poder ligar para vocês, crianças. Com ou sem tratamento, a doença avançaria e me devastaria. Não vou dizer quem foi meu médico, esse foi o sigilo que exigi dele. Procurei vários médicos e todos davam a mesma notícia. Não quis que vocês sofressem com isso, lembram que meu apelido na infância era Amélia dos Sorrisos? Decidi que permaneceria assim. Me submeti apenas a um tratamento paliativo, fazendo uso de medicação para aliviar a dor e falta de ar. Minhas desculpas que a falta de ar eram por uma anemia mal tratada dariam certo, porque sabia que teria poucos meses de vida e até gerar suspeitas em vocês eu já teria ido embora. Não sei como explicar, mas sei que meus dias se findaram.Posso ter mentido, mas pequenas mentirinhas de amor, se forem para não machucar, acho que valem a pena. Só quero, por fim, deixar a vocês meu amor. Deixo escrito nas minhas palavras meu amor e na esperança de ter deixado em suas lembranças memórias e recordações de amor.
Amo vocês. Com amor, mamãe"
E assim Amélia, nasceu, viveu, sofreu, errou, aprendeu, amou e hoje fica na agradável memória de quem a conheceu, de quem teve o privilégio de entender o porque ela era chamada de Amélia Carolina, a Amélia dos Sorrisos.
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